quarta-feira, 14 de setembro de 2011
Até quando triunfarão as nulidades?
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Cicero e Rui: indignados! |
Tudo que é escrito em Latim fica
sensacional - tem um jeitão incrível de verdade. Vejam, por exemplo, este texto
de Marco Tulio Cicero, século I antes de Cristo. : "Quousque tandem,
Catilina, abutere nostra patientia? Quamdiu etiam iste tuus furor nos eludet? Ad
quem finem audacia effrenata sese iactabit?" (tradução: "- Até quando,
ó Catilina, tu abusarás da nossa paciência? Ainda por quanto tempo teu rancor
nos enganará? Até que ponto tua desenfreada audácia dirá bravatas contra
nós?"). Cicero estava "bicanca" com um certo Lucius Sergius Catilina.
Melhor dizendo, um errado Lucius Sergius Catilina, sujeitinho viciado,
ambicioso, cruel, dissimulado, sacripanta. Imbecil de pai, mãe e parteira,
Catilina não conseguiu vislumbrar outro caminho para alcançar o poder que não
fossem os meandros da traição, da conspiração, do puxa-saquismo, da intriga,
cizânia e outras mazelas morais. Mas bateu de frente com a estatura moral de
Cicero. Pois bem, a história é longa: Cícero, por causa de sua dignidade numa
república corrupta, acabou sendo considerado "inimigo do estado" e,
certo dia, ao deixar a sua casa, foi capturado. Herenius cortou-lhe a cabeça e
as mãos; a esposa de Marco António cuidou, ela mesma, de arrancar-lhe a
língua. Assim, os catilinas da vida continuaram abusando da nossa
paciência. Ora, então, vejamos: Em 1923
de nossa era, no Brasil, Rui Barbosa desesperou-se diante de uma plêiade de
"catilinas" e pronunciou veemente discurso no parlamento. Tratava-se do
"Caso Satélite", uma chacina de marinheiros presos a bordo do navio
"Satélite", na Capital Federal. A autoria do crime foi apurada mediante
depoimentos dos assassinos confessos. Mas o assunto começou a cair no
esquecimento tendendo à impunidade. (Conhecemos bem essa história, não é
mesmo?) Quatro anos depois dos inquéritos, Rui Barbosa fez um
requerimento solicitando informações sobre o caso. Mexeu em caixa de marimbondos
e, como era de se esperar, o ilustre jurista e maçom esbarrou na força do poder
e no direito da força. Em 17 de dezembro de 1914 pronunciou o célebre discurso
no Senado Federal do qual geralmente só se conhecem poucas palavras. Vejam, em
resumo, o que disse o nosso Rui: (...) “A falta de justiça, Srs. Senadores,
é o grande mal da nossa terra, o mal dos males, a origem de todas as nossas
infelicidades, a fonte de todo nosso descrédito, é a miséria suprema desta pobre
nação. A sua grande vergonha diante o estrangeiro, é aquilo que nos afasta os
homens, os auxílios, os capitais. A injustiça, Senhores, desanima o trabalho, a
honestidade, o bem; cresta em flor os espíritos dos moços, semeia no coração das
gerações que vem nascendo a semente da podridão, habitua os homens a não
acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove a
desonestidade, promove a venalidade, promove a relaxação, insufla a cortesania,
a baixeza, sob todas as suas formas. De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver
prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver
agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da
virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto. Essa
foi a obra da República nos últimos anos. No outro regime, o homem que tinha
certa nódoa em sua vida era um homem perdido para todo o sempre – as carreiras
políticas lhe estavam fechadas. Havia uma sentinela vigilante, de cuja
severidade todos se temiam e que, acesa no alto, guardava a redondeza, como um
farol que não se apaga, em proveito da honra, da justiça e da moralidade gerais.
(...) Na República todos os grupos se alhearam do movimento dos partidos, da
ação dos Governos, da prática das instituições. Contentamo-nos hoje com as
fórmulas e aparência, porque estas mesmo vão se dissipando pouco a pouco, delas
quase nada nos restando. Apenas temos os nomes, apenas temos a reminiscência,
apenas temos a fantasmagoria de uma coisa que existiu, de uma coisa que se
deseja ver reerguida, mas que, na realidade, se foi inteiramente. E nessa
destruição geral das nossas instituições, a maior de todas as ruínas, Senhores,
é a ruína da justiça, colaborada pela ação dos homens públicos, pelo interesse
dos nossos partidos, pela influência constante dos nossos Governos. E nesse
esboroamento da justiça, a mais grave de todas as ruínas é a falta de penalidade
aos criminosos confessos, é a falta de punição quando se aponta um crime que
envolva um nome poderoso, apontado, indicado, que todos conhecem, mas que
ninguém tem coragem e apontá-lo à opinião pública, de modo que a justiça possa
exercer a sua ação saneadora e benfazeja. Mas, Sr. Presidente, nesta eliminação
monstruosa do sentimento jurídico e da ação judicial nesse desenvolvimento
rapidamente crescente do princípio de irresponsabilidade, dominando o princípio
da responsabilidade – que é o princípio fundamental das instituições
republicanas – porque a República é o governo dos homens sujeitos à lei, debaixo
de uma responsabilidade inevitável, por seus atos (...) Que é o que vos peço
diante infelicidade nacional, Srs. Senadores? Venho a esta tribuna trovejar
contra algum inocente? Pedir alguma cabeça à justiça? Venho pedir alguma
vingança? Quero alguma desforra afrontosa inspirada por sentimentos apaixonados?
Absolutamente. Eu venho implorar a abertura dos tribunais para o julgamento
desse inqualificável atentado – e, antes de tudo, a abertura do grande tribunal
da opinião pública pelo conhecimento desses papéis, que ninguém hoje pode ter
interesse em esconder, senão os culpados, ainda vivos, dessas atrocidades
inomináveis (...) Não quero falar no Sr. Marechal Hermes, no ex-Presidente da
República; todos o indigitaram como o maior dos responsáveis nesse fato; até
onde podem chegar, nas suas averiguações, as diligências particulares, o que de
todos os fatos, apurados até hoje, parece decorrer inquestionavelmente, é que o
fato do Satélite resultou das instruções dadas pelo Presidente da República e o
Ministro da Justiça ao oficial comandante do destacamento, que acompanhou aquela
expedição. Nessa afirmação concorrem todos os que sobre esses fatos se
pronunciaram. Poderia eu entrar em circunstâncias particulares, que alguma luz
sobre este acontecimento ainda viria derramar, mas não o quero fazer, neste
momento.” (...) Basta, Srs. Senadores. É a hora do voto. Mas, antes, de o
dardes, recolhei-vos, escutai a voz de Deus, e, se houverdes de negar justiça ao
sangue que por ela clama aos céus, lembrai-vos que ainda nos restará, para nossa
vingança, para a nossa desforra, para o nosso triunfo, a justiça dos vossos
remorsos, a justiça da opinião, a justiça da Providência, a quem não escapam os
que escaparem à da sua consciência e à do horror de seus semelhantes.” -
[Obras Completas de Rui Barbosa. “Discursos
Parlamentares”. Vol. 41, t. 3, 1914, p. 69-97.]
- Felizmente para nós, o Irmão Rui
Barbosa não teve a cabeça cortada nem a língua arrancada. Mas, em 1921,
"enjoado da política", e pleno de dignidade (e indignação), renunciou à
cadeira de senador. Depois recusou um projeto dos congressistas que desejavam
conceder-lhe lhe uma "premiação em dinheiro". Rui olhou para eles de
cima e disse com bom sotaque bahiano: "A consciência me atesta não
estar eu na altura de galardão tão
excepcional".
Muito oportuna sua postagem. Atual e condizente com nossa realidade. Parabéns.
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