VULNERABILIDADES DA DEMOCRACIA
''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''Percival
Puggina
"Mentem, sobretudo, impune/mente. Não mentem tristes. Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente que acham que mentindo história afora,
vão enganar a morte eterna/mente." (Do poema A implosão da mentira, de Affonso Romano de Sant'Anna, escrito em 1980)
Para a jornalista Ann Landers, a verdade é nua, ao passo que
a mentira é sempre bem vestida. Com efeito, a mentira é vestida para
seduzir e induzir ao erro. Há um problema grave na vida social,
portanto, quando a mentira se vulgariza, ganha status de direito e passa
a ser tolerada como conduta normal. Na minha infância, a mentira
determinava repreensões severas e era sancionada no catálogo das penas.
Mas o sermão acabava sendo ainda mais contundente do que a punição.
Hoje, a mentira pode ser pública, pode ser publicada, pode aparecer nas
manchetes. Pouco importa. Ela é acolhida entre as artes e ofícios da
vida social.
Poderia estar falando de futebol e das mãos do atleta,
espalmadas e erguidas, significando "Nem toquei nele!" quando joga o
adversário para fora do campo com um pontapé que todos viram. Essa é uma
das mais correntes e curiosas expressões da mentira. Mentira gestual,
silenciosa. Mas não é sobre futebol que escrevo, embora o retângulo
gramado, que nos desperta tantas paixões, seja palco de algumas mentiras
cabeludas contadas ao país.
É sobre política. A conheci como espaço onde, não raro, uma
mesma verdade comportava diferentes interpretações, visões incompletas,
em versões iluminadas pelas lanternas das distintas ideologias. Parte da
tarefa dos agentes políticos consistia em tornar mais convincente sua
peculiar perspectiva perante o juízo soberano do eleitorado.
Tolerava-se, dentro de certos limites, uma certa diferença entre a
conduta de quem chegava ao governo e o discurso que fizera na oposição.
Nesse caso, as fronteiras do juízo moral precisavam ser um pouco
flexíveis em função do que houvesse dentro dos armários da realidade,
como parte oculta da verdade não destapada durante a dialética da
campanha eleitoral.
As coisas foram mudando. Mente-se industrial e
impunemente, como descreve o poema acima. Mente-se com insistência,
corroborando o dito popular de que é mais fácil crer numa mentira
repetida muitas vezes do que numa verdade desconhecida ou pouco
proferida. Julgo ser isso que o poeta chamou de mentir história afora.
Uma coisa é o que assumimos, individualmente, como
verdadeiro; outra é a mentira. Uma coisa é o ajuste fino entre o
discurso e a ação, imposto pela realidade; outra é a incoerência
absoluta. E tem mais: uma coisa é estar no jogo democrático sendo
democrata; outra é usar a democracia contra a democracia. A mentira, a
incoerência e os falsos democratas, que querem calar o contraditório,
fraudam o processo dentro do qual se desenrola a soberania popular e
alteram o resultado do jogo político assim como o atleta que simula
pênalti não sofrido frauda o resultado da partida.
A política brasileira teria muito a ganhar se nos
tornássemos moralmente mais exigentes em relação aos desdobramentos do
debate político. O dinheiro na gaveta ou alhures não é a única forma de
corrupção que precisa ser combatida. É bom que a avaliemos com a
gravidade que tem. Mas sem perder de vista que há outras. A democracia
também é corrompida pela mentira, pela incoerência e pelos não
democratas que dela se valem para cobrar direitos que não franqueariam
se deles pudessem dispor.
Zero Hora, 18/12/2011
http://www.reservaer.com.br/gblrnew/detalhes.php?pSerial=11565
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